quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Retalhos da História " Martinho Lutero (1483-1546) nos 500 anos da Reforma Protestante"



Martinho Lutero por Lucas Cranach (1529)
 No dia 31 de outubro de 1517, se aceitarmos a tradição, Lutero, que ia fazer 34 anos dentro de dias e era já um teólogo e professor de créditos firmados, terá cravado as suas célebres 95 Teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, no então Eleitorado da Saxónia, gesto que era um convite público a que as suas proposições, como ele próprio lhes chamava, fossem debatidas por outros académicos. O episódio não está confirmado, mas também não importa muito, já que é certo que, nesse mesmo dia, enviou o mesmo documento ao arcebispo de Mainz, que conseguira autorização do Papa Leão X para recorrer à venda de indulgências como meio de pagamento de uma avultada dívida que contraíra junto do banqueiro bávaro Jakob Fugger. O próprio Papa promulgara uma indulgência plenária para todos os que contribuíssem financeiramente para as sumptuosas obras de reconstrução e decoração da Basílica de S. Pedro. E ambos recorriam aos serviços do frade dominicano Johann Tetzel, um zeloso e agressivo promotor de vendas que, em nome da Igreja Católica, concedia a remissão das penas temporais devidas à justiça divina aos que estivessem dispostos a abrir generosamente os cordões à bolsa. Parece que o slogan favorito de Tetzel correspondia, em alemão rimado, a algo como: “Assim que a moeda tilinta no cofre, a alma salta logo para o céu”.

Lutero queria reformar a Igreja Católica, mas nunca pretendeu provocar um novo cisma. E se o tráfico de indulgências o indignava, parecia-lhe ainda assim uma questão secundária perante as mais fundas divergências que o iam afastando irremediavelmente da ortodoxia católica e que se prendiam com pontos centrais de doutrina, como a fé, a graça ou a salvação. Mas foi a persistência com que se recusou a repudiar as suas críticas à corrupção daquela que era ainda a sua igreja, e o impressionante ritmo a que ia produzindo novos trabalhos ainda mais polémicos, que deram o impulso inicial a um movimento que iria crescer e ramificar-se de forma tão rápida e avassaladora que a hierarquia católica, para sua provável surpresa, já não o conseguiu travar. É por isso que o início da Reforma se comemora no dia 31 de outubro, feriado estadual em vários Länder alemães, há precisamente 500 anos. 

O essencial da doutrina luterana assenta em três pilares: o princípio de que a Bíblia, livremente interpretada pelo crente, é a autoridade doutrinal máxima, sobrepondo-se às interpretações tradicionais e às decisões de concílios ou papas; a proposição de que só Cristo é intermediário entre Deus e o homem, dispensando portanto toda a estrutura sacerdotal da Igreja; e a crença, bebida nas epístolas de S. Paulo, de que o pecador é justificado apenas pela fé, por graça sempre imerecida de Deus, e que não está ao seu alcance fazer seja o que for que possa ajudá-lo a assegurar a salvação.

As 95 Teses de Martinho Lutero
Convidado várias vezes a repudiar os seus escritos, e tendo-o sempre recusado, Lutero foi subindo o tom das acusações e acabou por ser excomungado por Leão X a 3 de janeiro de 1521. Mas, no final desse mesmo mês, Carlos V solicitou-o a comparecer na assembleia real reunida em Worms, onde deveria rejeitar ou confirmar as suas proposições. Mais uma vez, Lutero recusou negar as suas convicções e, enquanto discutiam o destino que lhe haviam de dar, deixou a Dieta (assembleia) de Worms de regresso a Wittenberg, tendo sido raptado pelo caminho, num sequestro encenado pelo seu protetor Frederico III, príncipe eleitor da Saxónia, que o escondeu durante um ano no castelo de Wartburg. Foi neste período de clandestinidade que o ex-monge agostinho realizou um dos seus feitos mais notáveis, a tradução do Novo Testamento, que o creditou como um dos criadores da moderna língua alemã.

Mas também não lhe faltavam dimensões menos recomendáveis: foi um antissemita particularmente virulento, mesmo para os costumes da época, e, se denunciou a promiscuidade entre a Igreja Católica e o poder temporal, ele próprio esteve sempre estreitamente ligado à nobreza alemã e não hesitou em recomendar que as revoltas camponesas (que as suas ideias, aliás, tinham ajudado a instigar) fossem reprimidas sem dó nem piedade, ou que fações protestantes radicais, como os anabatistas, fossem perseguidas e massacradas.

Uma das consequências sociais mais benéficas e marcantes desse primeiro protestantismo foi a disseminação cultural de uma “ética do trabalho”. Acreditava-se que se devia trabalhar bem e honestamente, com o fim de alcançar a excelência, e que se deveria ser frugal, porque o dinheiro não era verdadeiramente das pessoas e fora-lhes dado para que o administrassem. 

O impacto do Movimento Protestante não pode ser percebido se obliterarmos os contributos de Lutero ou Calvino, mas é igualmente incompreensível se ignorarmos a conjugação de fatores que se perfilou na Europa do início do século XVI, e que, no plano político, a par das tensões internas do Império de Carlos V da Áustria, incluíam o receio de ingleses e franceses do excessivo poder deste monarca. Havia assim o receio de que se todos os seus projetos se concretizassem, dois terços da Europa ficariam nas suas mãos, numa altura em que a Expansão era já à escala mundial, em que todas as potências participavam.

É neste contexto de mudança acelerada, de grande sucesso económico das nações do Norte na segunda leva da Expansão, que levará muita gente a acreditar, para usar a terminologia do sociólogo Max Weber, que a ética protestante tem relações com as origens do capitalismo.

Por outro lado, os países protestantes, ao serem demolidas todas as estruturas da Igreja, criou-se, do ponto de vista económico, um espaço de manobra que não existia na Europa que permanece católica, onde se continua a investir em estruturas como os mosteiros a as igrejas, grandes acumuladores de capital não reutilizável que não potenciavam o investimento. Já no lado protestante, esse dinheiro começava a ser desviado para instituições que promoviam o desenvolvimento financeiro.

O Luteranismo promoveu uma progressiva alfabetização de todos, que agora eram convocados a ler a Bíblia, sendo este um dos mais extraordinários efeitos da Reforma Protestante, tal como a tradução das Escrituras ou a exigência de que a música litúrgica seja cantada em língua vernácula, contribuindo assim para popularizar a cultura elevada.

Texto antissemita de Martinho Lutero: Sobre os Judeus e as Suas Mentiras (1543)

Em suma, o Luteranismo e a Reforma Protestante, contribuíram decisivamente para a alfabetização, para o desenvolvimento cultural e para as artes, e teve um sucesso indiscutível na promoção da economia capitalista.

Lutero nos tempos de monge agostinho

Quarto de Lutero no castelo de Wartburg

Casa-Museu Martinho Lutero em Wittenberg


Fontes: Queiroz; L. M. “O monge que quis reformar a Igreja e mudou o mundo”, in Público, 31 de outubro de 2017; https://goo.gl/2Q7NjT

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