"A história de Jennifer Teege e do seu avô nazi "
Era só mais uma ida à biblioteca. Uma das muitas visitas que Jennifer Teege gostava de fazer à Biblioteca Central de Hamburgo, na Alemanha. Filha de mãe alemã e pai nigeriano, a mulher negra, alta e esguia tinha 38 anos, naquele dia do ano de 2008 quando viu a visita normal à biblioteca transformar-se numa tempestade perfeita para a sua vida. Adotada aos sete anos e a lidar com depressões há muito tempo, sentiu-se atraída por um livro com o título Tenho de Amar o Meu Pai, Não É?, de Matthias Kessler. Havia algo na fotografia da mulher que surgia na capa que lhe parecia familiar. Ao folheá-lo, percebeu porquê. Aquela era a história de Monika Göth, a sua mãe biológica, que não via há décadas. Aquela era a história de Monika Göth, filha de Amon Göth, o infame líder do campo de concentração nazi de Plaszow, na Polónia, que aparece retratado no filme de Steven Spielberg, A Lista de Schindler. O homem que ficou conhecido como “o carniceiro de Plaszow”.
“Choque não é a palavra mais correta para descrever o que senti”, diz Jennifer, hoje com 48 anos, a propósito do seu livro, onde conta a história desta descoberta e do longo caminho que percorreu para a integrar na sua vida. Amon: O Meu Avô Podia Ter-me Matado. O que sentiu, foi que tudo na sua vida se tinha subitamente desorganizado. E o que ela sabia da sua vida até então já chegava para se sentir um pouco desorganizada, sem lhe juntar um avô nazi, que gostava de começar os seus dias disparando, da janela da casa, aleatoriamente, sobre os prisioneiros do campo de Plaszow. Sim, a cena é retratada n’A Lista de Schindler e não é fruto de qualquer imaginação perversa. “A julgar pelo que os sobreviventes dizem, o filme é muito preciso em relação à figura de Amon”.
Jennifer nasceu em 1970, fruto de uma relação de Monika com um nigeriano amigo de um homem que morava, em regime de subaluguer, na casa da antiga companheira de Amon, a mãe de Monika, Ruth Irene Göth. A menina foi entregue a um orfanato apenas com quatro semanas, supostamente, apenas por um período temporário. Monika visitava a filha esporadicamente e, por vezes, levava-a para casa da avó, o que permitiu a Jennifer construir memórias carinhosas de Ruth Irene, que a tratava tão bem. Aos três anos a criança começou a frequentar a casa de uma família de acolhimento e aos sete foi definitivamente adotada. Foi só nessa altura que o seu nome deixou de ser Jennifer Göth para assumir o sobrenome da nova família. Pouco depois, a família biológica saía definitivamente da vida da menina – até à descoberta sobre o avô, só voltaria a ver a mãe uma vez, já na casa dos 20 anos -, deixando-a a braços com sentimentos de abandono, dúvidas e revolta, a que não era alheia a sua aparência tão diferente dos seus novos pais e dos dois irmãos adotivos.
Mas nada disto se comparou ao que sentiu quando descobriu que, afinal, era mais uma alemã com um esqueleto no armário relacionado com a Segunda Guerra Mundial. Um enorme esqueleto. O chão fugiu-lhe dos pés. “Por que razão ninguém me contou a verdade? Toda a gente me mentiu estes anos todos?”, pergunta logo no início do livro. Percebeu que a família adotiva, ao contrário do que chegou a temer, não conhecia a sua ligação a Amon Göth. Mesmo assim, a nova descoberta fê-la dar um passo muito concreto em relação ao desconforto que disse sempre ter sentido quando os pais adotivos a apresentavam como filha – passou a tratá-los pelo nome próprio e não por mãe e pai. Em simultâneo surgiram as dúvidas sobre a genética. Teria herdado algum problema mental com origem naquele “criminoso de guerra”, como se refere ao avô? Seria essa a origem das suas depressões? Procurou respostas junto dos documentos do seu processo de adoção e não encontrou qualquer indicação de que apresentava sinais de doença mental em criança. Depois, foram anos de descoberta, de ganhar coragem para contar aos amigos israelitas que era neta de um dos nazis que, muito graças ao filme de Spielberg, ficou cristalizado na mente de milhões como o arquétipo da maldade daquele período da História.
As buscas de Jennifer levaram-na a retomar as leituras sobre o Holocausto que já fizera na adolescência, acrescentando-lhe novos livros e o visionamento de documentários, onde reencontrou a mãe e a avó, a primeira a tentar lidar com um pai cuja verdadeira essência também lhe tinha sido ocultada até muito tarde (Amon foi enforcado quando ela tinha apenas dez meses), a segunda ainda a negar que o homem que fora o amor da sua vida era o criminoso sanguinário que a História descreve. Foi a Plaszow, visitou a antiga casa onde os avós tinham morado, junto ao campo, a fábrica de Oskar Schindler, o campo de concentração e extermínio de Auschwitz. E depois havia Israel.
Foi em Israel que Jennifer viu, pela primeira vez, A Lista de Schindler, ainda sem saber que a sua vida estava intrinsecamente ligada à história que ali era contada. No início da sua vida adulta, Jennifer travara amizade com uma jovem israelita e acabou a viver quatro anos naquele país, aprendendo hebreu e, durante algum tempo, prestando auxílio a idosos, muitos dos quais tinham passado pelos campos de concentração nazis. As amigas israelitas foram, do seu círculo mais chegado, as últimas a saberem a história da família biológica de Jennifer. Disseram-lhe que ter Amon como avô não a definia, para andar para a frente com a sua vida.
A mulher que durante anos trabalhou em publicidade e agora dá palestras por todo o mundo, falando da sua experiência, diz que andou. Passaram-se praticamente dez anos sobre aquele dia na biblioteca. Os avós, diz, em grande medida, estão já arrumados numa das gavetas da sua vida. Não pensa neles a toda a hora, não quer fazer deles o tema central da sua existência. Ainda que o livro torne difícil concretizar esta vontade.
“Quando fiz a descoberta sobre as minhas origens não era algo que pretendia partilhar, mas no caminho, ao lidar com a situação e ao pensar nela, percebi que aquilo era algo que me aconteceu, mas que é muito maior do que a minha história pessoal e que precisava de ser contado e partilhado”, diz. Foi com essa intenção que pegou no telefone e contactou a revista alemã Der Spiegel. Disse qual era a sua história e que queria contá-la. “Por razões várias” a revista e Jennifer não chegaram a acordo. E então ela tentou outra publicação: a Stern. Era lá que trabalhava Nikola Sellmair, a jornalista que é coautora do livro sobre a vida de Jennifer, e que contaria, pela primeira vez, a sua história nas páginas da revista. “Ela fez um excelente trabalho e quando surgiu a oportunidade de escrever o livro, perguntei-lhe se se queria juntar ao projeto”, explica Jennifer.
A obra é, assim, uma história contada a duas vozes. Jennifer escreve de um ponto de vista pessoal, íntimo. Nikola entrevistou as várias pessoas que também surgem como personagens nesta história e inclui trechos contendo informação histórica e o ponto de vista dos outros envolvidos no processo. Incluindo Monika Göth, que Jennifer procurou e com quem esperava ter reatado uma relação. Após alguns encontros, isso não aconteceu. Monika desapareceu, de novo, da vida da filha e ela, hoje, começa por dizer que sabe por que ela o fez, mas quando procura explicá-lo faz uma longa pausa e acaba por dizer: “De facto não sei”. Há uma explicação que encontrou para ela mesma – Monika dissera-lhe que ela lhe lembrava Ruth Irene, e a mãe de Jennifer tivera uma má relação com a progenitora. “Talvez fosse isso, talvez fosse muito rápido, não sei. A diferença é que em criança, quando sofres um abandono, não entendes e pensas que a culpa é tua, que há algo de errado contigo. Em adulta consegues ver que o facto de ela cortar os laços de novo é deplorável, mas mais para ela, que está a perder a possibilidade de acompanhar os dois netos, por exemplo. Para mim, é mais fácil agora lidar com isso”, conta.
Casada e com dois filhos, Jennifer repete que não quer ficar presa ao passado, à história da família. Quer usá-la para o presente e o futuro. Mas também para mostrar o que diz ser “o poder tóxico do segredo”. E não quer que seja apenas um livro sobre a chamada “terceira geração”, os netos dos nazis que participaram na guerra. “O livro tem muitas camadas, fala da adoção, da depressão, de tanta coisa”, diz. Para o público, contudo, é quase impossível fugir àquele avô que o actor Ralph Fiennes encarnou em 1993. Há sempre perguntas sobre ele, a que Jennifer responde, embora pareça fazê-lo já com algum cansaço. Ele era o avô dela e um criminoso de guerra. Ponto. Mais difícil foi encaixar a imagem da avó carinhosa, que tratava tão bem dela, como a amante de Amon, que com ele partilhava a casa nas imediações de Plaszow. Jennifer confessa no livro que o processo de lidar com essa dualidade da Ruth Irene lhe custou mais.
Hoje diz que não passa a vida a pensar na avó, e quando fala dela, é com a perspetiva de usar o conhecimento do passado para apontar caminhos para o futuro, num mundo que, confessa, a preocupa muito. “Quando olhamos para Amon, ele é o retrato claro do perpetrador, a figura do líder nazi, mas a minha avó não era. Ela fazia parte das pessoas que apoiavam o sistema, os espectadores silenciosos que também foram culpados, mas não no sentido legal, porque nunca foram a julgamento. E este é um dos perigos que enfrentamos hoje, esta massa de pessoas que apoia os líderes populistas que vemos surgir em todo o mundo”. Jennifer diz que a assusta – “mas não em demasiada, senão congelamos” – a forma como estes líderes divulgam mensagens de ódio que são “aceites socialmente”, porque vêm, precisamente, de líderes legitimamente eleitos. “O Holocausto foi há muito tempo, no passado, mas as pessoas precisam de perceber que nessa altura houve mecanismos a funcionar que já tinham existido antes, senão contra os judeus, contra outros grupos, e que há exemplos incontáveis disso ao longo da História. Se não se percebe isto, eles vão repetir-se e é sobre isso que procuro falar, focando-me na ideia que temos sempre que colocar a Humanidade primeiro, e ter empatia”, diz.
Passaram-se dez anos desde que a vida de Jennifer foi virada do avesso. O avô nazi fez dela outra pessoa? “Ainda sou a Jennifer”, diz, abrindo um largo sorriso. “Procuro viver uma vida autêntica e tenho agora boas fundações, que me dão estabilidade. Costumo dizer que se apertarmos os botões de uma camisa na casa errada, ela está apertada, mas sentimos que algo está errado. Hoje, sinto que consegui começar com o botão certo.”
Carvalho, P. (19 de fevereiro de 2018). Se uma mulher negra descobre que é neta de um criminoso nazi isso é a vida real. O Público, p. 5.
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