Nos anos 1950, a visão da “inferioridade do negro” e da sua condição intrínseca de “classe baixa e desprezível” dominava ainda a sociedade brasileira como a sua principal cicatriz de atraso. Até mesmo nos desportos, onde parecia existir igualdade, havia ainda alguns clubes de futebol de capitais estaduais que não permitiam negros na sua equipa principal. (A crónica desportiva, inclusive, escrevia “colored” quando queria distinguir algum jogador negro. E os próprios negros se auto denominavam “morenos”. Ou “escurinhos”, quando a menção envolvia um gesto carinhoso.)
Todo o Brasil tinha orgulho de não imitar os Estados Unidos na discriminação brutal e violenta contra os negros, na época, mas boa parte dos brasileiros brancos – ricos ou pobres – envergonhava-se de mostrar em público os seus eventuais amigos negros.
Neste quadro, aquela fotografia de Gregório Fortunato penteando Getúlio Vargas espalhou-se naqueles dias [agosto de 1954] pelo país inteiro como “uma prova”.
Prova de quê? De que o Presidente da República dava intimidades a um negro. Ou que tinha um escravo negro investido da autoridade de ter poder até sobre os brancos.
Getúlio gostava daquele negro que lhe era submisso por fidelidade, não por outro interesse. A submissão por lealdade fazia-o sentir-se como tendo um escravo sem escravizá-lo: a sensação de poder ganhava novo contorno, próximo e doméstico, e a solidão se dispersava. Mesmo assim, aquele instantâneo fotográfico espalhado pelo país inteiro, em que Gregório penteia o cabelo de Getúlio, retratou apenas um fugaz momento. Foi talvez a única vez, mas Getúlio sentiu-se feliz e poderoso. No automóvel conversível, ao ar livre, o vento esvoaçando os ténues fios da cabeleira que já desaparecia, e Gregório ali – prestimoso e rápido –, arrumando-lhe os cabelos, dando-lhe a elegância que um Chefe de Estado merecia e necessitava para desfilar em carro aberto pelas ruas da cidade. Sim, mas a fotografia deu ao público a ideia de uma vaidade que ele não tinha. Ou que até poderia ter, mas que nunca aparentava ou não deixava transparecer – a da aparência física –, ainda que na verdade a cultivasse e a tivesse escondida, como escondia tudo o que ele gostava.
Ninguém falava, porém, da vaidade que ele escondia, mas do negro que mostrava.
Tinha sido só aquela vez. Ou apenas uma ou outras mais, ao acaso. O suficiente, porém, para que – num tom irónico e depreciativo – milhões de escandalizados homens e mulheres exclamassem que o “negro Gregório” penteava os cabelos do Presidente da República, como um abominável macaco feito vallet de chambre em plena rua.
Flávio Tavares, O Dia em que Getúlio Matou Allende, Rio de Janeiro, Editora Record, 2004 (adaptado).
Getúlio Vargas e o sempre leal Gregório Fortunato atrás dele: o chefe da guarda fazia a barba e o cabelo do presidente e acompanhava-o até nos encontros amorosos |
O fiel segurança pessoal
Gregório Fortunato penteia os cabelos de Vargas: imagem feita por fotógrafo
amador, que não se identificou, com medo de represálias. |
Fontes das imagens: https://pt.wikipedia.org/wiki/Greg%C3%B3rio_Fortunato;