Revoltosos republicanos na
Rotunda (atual Praça Marquês de Pombal)
"Quando chegaram a casa era dia claro. A mãe esperava-os à janela, com as mãos ansiosamente cruzadas no peito: «Depressa filhos! Que demora esta!» – e tirou-se para dentro. Atravessaram a rua a correr em direção à porta. Pelas janelas e às esquinas havia caras estremunhadas, assustadiças. Circulava gente com timidez, indagando, hesitante, com medo duma bala perdida. Subiram a escada tropeçando e rindo, falando todos ao mesmo tempo, respondendo aos vizinhos que acudiram aos patamares:
– É a revolução! Os republicanos já estão na Rotunda!
(…)
Durante dois dias e duas noites o ar de Lisboa andou esguedelhado de tiros, o céu riscado de fogos de vista singulares. Pairavam no ar palavras novas, de intrigante e mágico sentido – metralha, granadas, máuseres, shrapnell, obuses, barricadas, Maxim’s… O Santiago sabia tudo e explicava, à janela,
tomado da excitação que vinha na aragem, no sol, nos ecos de longe, arrastando vozes e varrendo as fachadas, dando-lhes um estonteamento feliz, de grande festa. Era um espetáculo empolgante (…).
Anoiteceu naquilo, e de vez em quando, a poente, as granadas raiavam de fogo o veludo macio do céu, onde a estrela da tarde fulgurava num resto de luz verdosa. Outras explodiam em pleno ar, deixando uma bola de fumo que a aragem dissipava lentamente. Parecia um arraial. Mas não houve remédio senão ir para a cama, deixando os outros de janela, a gozar. Adormeceu depressa, embalado pelo vozear confuso, as exclamações de espanto, o troar distante dos canhões.
(…)
De repente o Santiago deu um grito:
– Mãezinha! Mãezinha! Venha cá ver! A bandeira republicana já está içada no quartel do Carmo!
Correu de boca em boca e encheu o ar da vizinhança um Ah de assombro, surpresa, desolação e alegria. Todos quiseram ver, estenderam-se mãos para o binóculo, todos suplicaram… Mas havia um só. O sr. Sepulcra alongou fora da janela a beiçana formidável e o bigode mal pintado, e regougou com a voz nasalada e desdenhosa (havia muito tempo que nem se cumprimentavam):
– O menino é parvo! Pode lá ser, abandeira dos desordeiros!
Houve um instante de dúvida e frio. Sim, talvez o pequeno se tivesse enganado, isto de crianças… Intimidado, com os olhos vermelhos de insónia e uma ponta de conjuntivite, o Santiago encolheu os beiços e não contradisse o sr. Sepulcra, um cavalheiro imponente, e para mais funcionário das Alfândegas d’el-rei nosso senhor. O binóculo passou de mão em mão, até a velha Delfina quis ver, mas não se entendeu com o objeto – «Troca-me as vistas!», disse ela – e todos confirmaram que sim-senhor, lá estava a bandeira verde e encarnada, que até parecia ali a dois passos! A mãe, arrebatada, estendeu o aparelho ao vizinho:
– Veja, veja lá se o pequeno é parvo, ou quem é!
Entredentes chamou-lhe «caloteiro». Com certa repugnância aristocrática, o sr. Sepulcra pegou e olhou. Logo empalideceu, até a beiçola de rabadilha perdeu a cor: era a bandeira da canalha! A dona Mariquitas, que estava toda inclinada para fora, com os seios de neve perfeitamente à vista no roupão claro, deu um gritinho e desapareceu com os papelotes. Atrás dela sumiram-se todos – um dos filhos do funcionário rosnou com desprezo: «Galegos! republicanos!» – e fecharam as janelas em protesto, com estrondo. Ouviu-se a Rita num grande berreiro… O binóculo voltou a circular em mãos amigas. Até os Mitelos, reconciliados, vieram ver. A monarquia estava acabada.
Naquela noite, contra o costume, o sr. Augusto chegou cedo. Três dias tinha ficado fora de casa. Vinha pálido e fatigado, nem se tinha despido, com a barba crescida, mas radiante. Trazia uma mancheia de shrapnell, duma granada que tinha explodido na lavandaria do Hotel, uma recordação do Cinco de outubro.
Ficou acordado até muito tarde, a contar tudo à mulher, no quarto, à porta fechada. E pela primeira vez desde que o conheciam e amavam, os filhos o ouviram chorar como uma criança. A dona Adélia falava-lhe com ternura, ria-se daquela emoção…
Então compreenderam que alguma coisa de grande e sério de passava: não era só festa, só vivas, só fogos-de-vista! E ficaram muito tempo calados, no escuro da noite, pensando no pai que chorava de alegria, até que o cansaço daquele primeiro dia da Vida Nova os venceu, e adormeceram."
José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso, 1960 (excertos).
– O menino é parvo! Pode lá ser, abandeira dos desordeiros!
Houve um instante de dúvida e frio. Sim, talvez o pequeno se tivesse enganado, isto de crianças… Intimidado, com os olhos vermelhos de insónia e uma ponta de conjuntivite, o Santiago encolheu os beiços e não contradisse o sr. Sepulcra, um cavalheiro imponente, e para mais funcionário das Alfândegas d’el-rei nosso senhor. O binóculo passou de mão em mão, até a velha Delfina quis ver, mas não se entendeu com o objeto – «Troca-me as vistas!», disse ela – e todos confirmaram que sim-senhor, lá estava a bandeira verde e encarnada, que até parecia ali a dois passos! A mãe, arrebatada, estendeu o aparelho ao vizinho:
– Veja, veja lá se o pequeno é parvo, ou quem é!
Entredentes chamou-lhe «caloteiro». Com certa repugnância aristocrática, o sr. Sepulcra pegou e olhou. Logo empalideceu, até a beiçola de rabadilha perdeu a cor: era a bandeira da canalha! A dona Mariquitas, que estava toda inclinada para fora, com os seios de neve perfeitamente à vista no roupão claro, deu um gritinho e desapareceu com os papelotes. Atrás dela sumiram-se todos – um dos filhos do funcionário rosnou com desprezo: «Galegos! republicanos!» – e fecharam as janelas em protesto, com estrondo. Ouviu-se a Rita num grande berreiro… O binóculo voltou a circular em mãos amigas. Até os Mitelos, reconciliados, vieram ver. A monarquia estava acabada.
Naquela noite, contra o costume, o sr. Augusto chegou cedo. Três dias tinha ficado fora de casa. Vinha pálido e fatigado, nem se tinha despido, com a barba crescida, mas radiante. Trazia uma mancheia de shrapnell, duma granada que tinha explodido na lavandaria do Hotel, uma recordação do Cinco de outubro.
Ficou acordado até muito tarde, a contar tudo à mulher, no quarto, à porta fechada. E pela primeira vez desde que o conheciam e amavam, os filhos o ouviram chorar como uma criança. A dona Adélia falava-lhe com ternura, ria-se daquela emoção…
Então compreenderam que alguma coisa de grande e sério de passava: não era só festa, só vivas, só fogos-de-vista! E ficaram muito tempo calados, no escuro da noite, pensando no pai que chorava de alegria, até que o cansaço daquele primeiro dia da Vida Nova os venceu, e adormeceram."
José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso, 1960 (excertos).
Revoltosos republicanos na Rotunda (atual Praça Marquês de Pombal), de 4 para 5 de outubro de 1910. |
Votos de um bom feriado!
A equipa da Biblioteca
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