domingo, 28 de janeiro de 2018

Retalhos da História " Sabonetes de Pedra"

No âmbito da atividade "Retalhos da História, em articulação com a disciplina de História do 9.º ano, evocamos o  "Dia Internacional em memória das vítimas do Holocausto" através da apresentação do seguinte texto: "Sabonetes de Pedra".

Para refletir e analisar...


SABONETES DE PEDRA 

Há algumas semanas, desconhecidos assaltaram o canil municipal de Coimbra, tendo desaparecido todos os cães que estavam presos nessas celas da morte. Fiquei contentíssimo e com pena de não ter feito parte do grupo de assaltantes. Depois, as minhas ilusões acerca da humanidade sofreram mais um rude golpe: diz-se que os desconhecidos levaram os animais para os utilizar em combate, atiçando contra eles os cães que treinam para matar. Quando julgava estar perante libertadores de animais, a questão de estes terem violado a lei não me preocupou nem um bocadinho. Em geral, deve dizer-se, estou-me nas tintas para a lei. Mais ainda neste caso. O grego Plutarco foi mais longe que Cristo, sustentando há dois mil anos que o domínio da bondade é mais vasto que o da justiça e da lei e que há uma comunidade mais fundamental e mais larga que a polis, baseada numa lei não escrita, a da piedade. Em nome da piedade e da vida tudo é legítimo, desde que não se usem os meios de modo a contradizer os fins. Plutarco pertencia a uma comunidade onde havia escravos, ou seja, onde muitos seres humanos eram, como os animais, vítimas de uma crueldade impensada, não criticada, inconsciente. Os escravos estavam fora da pólis tal como sucedeu, em várias sociedades históricas, com as mulheres, as crianças, os pretos. Muitos destes seres humano só ganharam direito à vida desde o cristianismo, e direito à lei desde a Revolução Francesa. Muitos seres humanos — a maioria? — só são seres humanos há muito pouco tempo. Passo frequentemente por camiões que têm escrito atrás uma frase terrível: «transporte de animais vivos». Vejo porcos, ovelhas, vitelos, apertados uns contra os outros. Sei que vão ser desembarcados num sítio que cheira a morte. Baixam-lhes as portas do camião e o terror invade-lhes os olhos. Choram, escoicinham, tentam fugir. Seres humanos com rostos de gelo empurram-nos para máquinas de matar. Pergunto-me que efeito teria um carro funerário com a inscrição «transporte de pessoas mortas». Ou uma carrinha de escola ostentando «crias vivas de Homo sapiens». Uma das histórias que mais me impressionam desde que me lembro de ter memória — não sei se verdadeira — é a dos sabonetes de pedra. Conta a história que nos campos de extermínio de infra-humanos (untermenschen) dos anos de 1943-45, os exterminadores, por razões de eficiência operacional, acalmavam as vítimas à entrada das câmaras de gás distribuindo-lhes sabonetes de pedra, de modo a convencê-las de que iam tomar banho. O que mais me aterroriza é que houve pessoas que tiveram de pensar nisto, debater o assunto numa reunião, encaminhar a encomenda para um fabricante, aprovar um protótipo, receber caixotes cheios de sabonetes de pedra. A minúcia posta na fabricação dos sabonetes de pedra é uma demonstração fria de que os exterminadores não sentiam qualquer empatia, qualquer piedade, relativamente aos untermenschen que exterminavam. Naturalmente porque não os consideravam da sua espécie. Espero que se perceba que não há réstia de demagogia na comparação que sugiro. Existem certamente caçadores, empregados de canis e matadouros, guardas de campos de concentração e criminosos de guerra que são compassivos. Mas parará a piedade nas fronteiras da espécie como parava nas fronteiras do género, da raça, do estatuto legal? Todos conhecemos pessoas que não gostam de seres humanos mas gostam de animais. Mas não há ninguém que, sendo cruel para animais, possa verdadeiramente gostar de pessoas. Quando os defensores dos animais nos pedem para deixarmos de comer carne e deixarmos de maltratar animais, é à nossa piedade que apelam. Não só pelos animais, claro. Pela criança que não pode perceber o que lhe fazem, o velhote sufocado debaixo dos escombros de uma guerra incompreensível, o vitelo que cheira ao longe a pestilência do matadouro, a rola mal ferida que nunca chegará ao ninho. 

Porta da câmara de gás de Majdanek
Fonte: Paulo Varela Gomes, in Ouro e Cinza, Lisboa, Tinta da China, 2014

Completamos com uma sugestão de leitura:



Sinopse da obra: "Um dia, no campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha, Luis Sepúlveda encontrou gravada numa pedra uma frase de autor anónimo que dizia: «Eu estive aqui e ninguém contará a minha história.» Essa frase trouxe-lhe à memória toda uma galeria de personagens excecionais que havia conhecido e cujas histórias mereciam ser contadas. 

Assim nasceu o presente livro, As Rosas de Atacama. «Histórias marginais» (aliás o título da edição original espanhola), e também histórias de marginais, os relatos que compõem esta obra têm todos os ingredientes a que Luis Sepúlveda habituou os seus leitores: a defesa da vida e da dignidade humana, a luta pela justiça, o elogio dos valores ecológicos, o exotismo como afirmação de que os sonhos são os mesmos em todos os lugares da Terra. Como em todos os livros de Sepúlveda, também neste a realidade supera a ficção."


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